Em maior resgate do ano, Souza Paiol é responsabilizada por manter 116 trabalhadores escravizados na colheita de palha para seus cigarros

Para tentar aplacar a fome, improvisaram fogareiros para cozinhar dentro dos alojamentos, que tinham paredes sem revestimento nem vedações e era cheio de goteiras. Em uma das casas, os trabalhadores chegaram a armar barracas para se protegerem da chuva. Porém, a maior parte dormia em redes e colchões no chão. 

Os trabalhadores não receberam itens de higiene básicos, como sabão ou papel higiênico. Durante a colheita, em plena pandemia, precisavam beber água da mesma garrafa. Segundo relatam os fiscais, nenhuma medida para prevenir a transmissão da covid-19 foi tomada. 

Além de compartilharem a mesma garrafa, os alojamentos eram superlotados e grande parte dos trabalhadores não tinha tomado vacina contra covid. “Se ficassem doentes e não trabalhassem, era descontado R$ 15 pela marmita”, destaca Campos.     

Outro agravante era o fato de as facas usadas pelos trabalhadores para separar a palha da espiga eram cobradas pelos contratantes, que também cobravam pelas pedras usadas para amolá-las e até pelas fitas adesivas usadas pelos trabalhadores para protegerem os dedos. Uma norma que rege o trabalho no campo (a NR-31) determina que o empregador deve disponibilizar, gratuitamente, as ferramentas de trabalho aos funcionários 

“Eles não recebiam luvas e nenhum equipamento de proteção individual. Como o movimento para separar a palha é muito rápido e repetitivo, os trabalhadores usam fitas nos dedos para diminuir as feridas”, explica Campos. A fiscalização constatou que alguns trabalhadores tinham lesões nas articulações dos dedos. 

Contratos informais e "gatos"

A operação de resgate começou em 13 de outubro e foi encerrada na quarta-feira (20), quando os 116 trabalhadores receberam as indenizações, pagas pela Souza Paiol, que somadas chegam a R$ 900 mil. 

As negociações entre Vasconcelos, o empresário da Souza Paiol, e os contratantes da mão de obra eram totalmente informais, sem documentos assinados e baseada apenas em acordos verbais. Vasconcelos negociou com dois contratantes para que eles montassem uma frente de trabalho e recrutassem os trabalhadores para colher a palha do milho na Fazenda Araçá, em Água Fria de Goiás.

Esses dois contratantes, por sua vez, passaram a tarefa para outros três contratantes, que são chamados de “gatos”. Dois deles recrutaram trabalhadores em Pompéu, na região Centro-Oeste de Minas Gerais. A cidade fica a 90 quilômetros da sede da Souza Paiol, localizada em Pitangui. Outros trabalhadores migraram do Maranhão, Piauí e interior de São Paulo. 

A estratégia de não criar vínculos entre os trabalhadores e a empresa foi apontada pelo coordenador da operação como uma forma de ocultar o responsável pela exploração dos trabalhadores. Contudo, um depósito de R$ 600 mil realizado pelo proprietário da Souza Paiol permitiu a identificação do responsável pela contratação dos “gatos”.

Migrantes de Minas Gerais, São Paulo, Piauí e Maranhão
Migrantes de Minas Gerais, São Paulo, Piauí e Maranhão, os trabalhadores só tinham direito a duas marmitas por dia; mesmo começando a jornada às 5h, não recebiam café da manhã (Foto: Grupo Especial de Fiscalização Móvel / Divulgação)

Procurado, Vasconcelos disse à Repórter Brasil que os trabalhadores resgatados não trabalhavam para ele e que são terceirizados. “Eles vendem palha para mim como vendem para outras fábricas de cigarro de palha”, disse o  empresário. Questionado sobre a transferência de R$ 600 mil que fez para os responsáveis pela contratação da mão de obra, afirmou que foi um adiantamento que fez para pagar a palha do milho. “A responsabilidade é de quem contrata essas pessoas”, entende Vasconcelos. 

O Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Defensoria Pública da União (DPU), porém, entenderam diferente e vão propor um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Souza Paiol. 

Vasconcelos disse que também não está pagando as indenizações aos trabalhadores, mas que apenas emprestou o dinheiro para que seus fornecedores pudessem fazer os pagamentos aos resgatados.

Violações em todas as etapas de produção

Não é apenas na colheita no milharal que a cadeia de produção do cigarro de palha é marcada por violações trabalhistas. Quem transita pelas ruas das cidades do Centro-Oeste de Minas Gerais observa várias pessoas sentadas nas calçadas enrolando cigarros de palha. São trabalhadores informais que atuam sem nenhum direito, conforme a Repórter Brasil já denunciou. O tipo de contratação para enrolar os cigarros no interior de Minas Gerais é semelhante ao identificado pela fiscalização trabalhista em Goiás. 

Os intermediários que contratam os serviços das famílias para enrolar os cigarros não fornecem equipamentos de segurança, como máscaras, e nem itens básicos, como cadeiras adequadas para a atividade. Os trabalhadores sentam em bancos sem encosto e até no chão ou nas calçadas. Também é comum ver crianças e adolescentes enrolando os cigarros – situação agravada durante a pandemia, pois as aulas presenciais estavam suspensas.

Casa com rede e colchão no chão (Foto: Grupo Especial de Fiscalização Móvel/Divulgação)
Em uma das casas, os trabalhadores chegaram a armar barracas para se protegerem da chuva. Porém, a maior parte dormia em redes e colchões no chão (Foto: Grupo Especial de Fiscalização Móvel/Divulgação)

Sem vínculos e sem direitos trabalhistas

José Haroldo de Vasconcelos, teve a ideia de comercializar cigarros de palha, pois tinha dificuldade de enrolar os próprios para fumar e decidiu contratar outras pessoas para a tarefa. O que era apenas a forma de saciar um vício se tornou um negócio que vigora há mais de 20 anos, com histórico de violações trabalhistas e denúncias de sonegação fiscal.   

Antes de ser flagrado com trabalho escravo, Vasconcelos foi alvo de uma operação do Ministério Público de Minas Gerais e da Receita Estadual, que o acusou de sonegação fiscal e de não ter pago cerca de R$ 20 milhões em tributos. Segundo as investigações realizadas em 2019, o grande volume de produção e venda não declarados gerou um lucro que pode ter sido usado para a aquisição de mais de uma dezena de imóveis em bairros nobres de Belo Horizonte e Nova Lima (MG).

Vasconcelos disse que assumiu a dívida, negociou com a Receita Estadual e está pagando as parcelas do montante que sonegou. 

A sonegação fiscal não é uma exclusividade da Souza Paiol no setor. A operação Porronca (uma das formas que o cigarro de palha é chamado no interior de Minas Gerais), de 2019, mirou oito empresas que fabricam cigarros de palha em Minas Gerais e Goiás. Segundo a força-tarefa, a estimativa é a de que as empresas deixaram de pagar cerca de R$ 100 milhões de impostos. Indícios de lavagem de dinheiro, com carros e imóveis de luxo, foram destacados pelos investigadores.